Entrevista à Dra. Paula Pereira - Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do Ca
1. Como é o seu dia a dia? Que estratégias utiliza? Que dificuldades ainda sente?
No dia a dia, enquanto cidadã, consegui ter uma perfeita adaptação a uma nova realidade que foi a perda de visão. Consegui ao longo dos tempos, com muito apoio da família, desenvolver algumas competências específicas que são extremamente necessárias e consegui voltar a ter um quotidiano que eu considero normal. As grandes adaptações que tive de fazer foi efetivamente algumas aprendizagens específicas, aprender a utilizar o computador e a andar sozinha de uma forma diferente, e aprender a utilizar os mais diversos materiais em casa. Temos que naturalmente aprender a mexer e a tocar as coisas, aprender a ver os objetos e tudo isto supõe algum trabalho, tempo de preparação e adaptação a uma nova forma de ver. Mas quando nós queremos e investimos, nós conseguimos! O mais importante é nós primeiro pensarmos que queremos mudar alguma coisa. Entretanto deparamo-nos com um problema, uma nova questão que se coloca na nossa vida e nós temos que saber ultrapassá-la, é preciso fazer alguma coisa para transpor essa dificuldade e foi sempre o que fiz. (…) Dificuldades? Considero que vivo num meio privilegiado porque conheço outras cidades e sei que não é tão fácil viver e conviver como é em Viana. A nossa cidade, queiramos ou não, já está bastante arrumadinha.
2. A sua integração no mercado de trabalho foi fácil?
Não, não foi fácil. Quando perdi a visão estava no ensino e realmente o primeiro ano que lecionei depois de ter ficado cega foi assim uma coisa muitíssima difícil. Mas não desisti, dei o meu melhor! Mas às tantas achei que não seria o melhor caminho, tendo também em conta as circunstâncias de vida de um professor que hoje está numa escola e amanhã vai para outra e no ano seguinte para outra. Porque, depois de eu ter estado na escola de Lanheses, no ano seguinte voltei a concorrer ao ensino e apanhei uma escola no Porto, num bairro social e à noite! Imaginem como é que uma pessoa cega tem tempo suficiente e condições para fazer as adaptações ao espaço, a um local e ao ambiente de trabalho para um ano. Eu preciso efetivamente de tempo para me adaptar. Mas como não sou de desistir e vou à luta, arranjei formas de trabalhar e de regressar ainda para Viana depois das aulas, que acabavam às 22h30. Só que claro, cheguei à conclusão que nenhum ser humano merece isso. Então desisti do ensino, puro e simplesmente não concorri mais! Optei e achei que iria encontrar outra coisa para fazer na vida, eu não sabia muito bem o que seria. Estive um ano desempregada, até que fui fazer uma formação para o Porto. Nessa altura, tive um apoio extraordinário da Lany, o meu cão-guia. Um cão-guia traz-nos imensa liberdade, outra destreza. Foi ótimo! Quando fui fazer essa formação, fui já sabendo que no final eu teria um estágio e, portanto, pensei “vou fazer a formação e depois vou ter a oportunidade de mostrar a alguém, no âmbito desse estágio, que sou capaz de fazer alguma coisa, que tenho competências para o trabalho”. Então, já nessa altura, eu comecei a pensar neste projeto aqui na biblioteca. Comecei a apostar nisso e a construir o projeto. Apresentei o projeto na câmara e ficou assim um bocadinho a marinar. Ainda era cedo, a biblioteca ainda não tinha previsões de abrir. Entretanto terminei a parte teórica da formação e pedi estágio aqui na câmara municipal, mais concretamente na biblioteca, já a pensar neste trabalho. No período de estágio tive tempo de pensar bem no que nós poderíamos fazer aqui nesta nova biblioteca enquanto serviço de leitura especial, porque não é fácil dinamizar um espaço destes, mas é possível e acima de tudo necessário!
3. Que funções desempenha atualmente na biblioteca?
Eu sou a responsável por este serviço, o serviço de leitura especial, o que pressupõe tudo o que está a ele ligado. Desde: desenvolver ou propor o desenvolvimento de várias iniciativas e projectos; trabalhar no sentido da conversão e adaptação de livros; e o contacto com os leitores (sou eu que faço todos os empréstimos). Para incentivar os leitores a ler, tive de criar algumas formas de os manter sempre em contacto para os despertar para coisas novas: há atividades manuais regulares. Faço igualmente algumas produções. Por exemplo, nós produzimos aqui a agenda cultural do município em braille (…). Há outra coisa que faço que é receber grupos. É muito importante que as pessoas tenham um conhecimento alargado daquilo que uma pessoa que não vê pode fazer. Se tiverem o conhecimento e se souberem que uma pessoa independentemente de não ver, pode fazer isto ou isto, os empregadores estarão mais disponíveis para integrar um colaborador cego na sua empresa, por exemplo.
4. A cidade de Viana do Castelo está preparada para a mobilidade de pessoas cegas e com baixa visão?
Sim, mas poderia estar melhor. Acho que há algumas barreiras, umas mais por uma questão de cidadania, por exemplo os comerciantes que instalam as coisas no meio da rua. Isso para quem é utilizador de bengala é muito complicado, perigoso até. Para mim nem tanto, porque como ando com um cão-guia, ele protege-me, é uma coisa impressionante! Mas é importante termos oportunidade de falar com a comunidade, encontrarmos momentos para partilhar estas experiências. Outra coisa são os carros em cima dos passeios e das passadeiras e eu aí, mesmo sendo utilizadora de cão-guia, tenho dificuldade. Eu vou pelo passeio e peço ao cão para me localizar a passadeira mas está lá um carro estacionado, o cão não vai ser capaz de ir à passadeira e vai andar ali desorientado (…). Aqui em Viana, as pessoas já estão bastante sensibilizadas para a utilização do cão-guia e eu não tenho dificuldade em entrar no shopping ou no hospital, não sou muito chamada à atenção, o que não acontece fora de Viana. As barreiras maiores que eu aponto em termos de cegueira e baixa-visão, são as sociais.
5. Que sugestões daria à câmara municipal para melhorar as condições de acessibilidade?
Eu concentro-me mais naturalmente na questão da cegueira e da baixa-visão. Acho que, pese embora eu já tenha dito que a questão de Viana é um bom exemplo, também disse que há sempre coisas a melhorar. Eu vou propor na equipa das acessibilidades, a acessibilidade à informação através dos meios eletrónicos. Os documentos para serem acessíveis têm de estar num determinado formato o que muitas vezes não acontece. (…) Outros melhoramentos? Por exemplo, usar um meio de sinalética que identificasse algumas coisas, como as passadeiras. Uma outra sugestão seria tornar a cultura mais acessível às pessoas cegas e com baixa-visão através da técnica da audiodescrição. Eu gostaria imenso de ter esse produto nos locais de cultura, como por exemplo nos museus, nas exposições, no teatro para poder fruir daquilo que lá se mostra e se expõe.
6. Sente ou já sentiu algum tipo de discriminação?
Já. Mas, eu sempre que posso, que tenho a oportunidade e sinto que me estão a colocar num plano diferente só porque não vejo, eu gosto de tentar fazer alguma coisa, gosto de, se possível, falar com as pessoas, com quem me está a usar de algum modo para que aquilo não se repita (…). Uma que me chocou particularmente teve muito a ver com esta questão da empregabilidade, que é daquelas coisas que me chocam mais, que é as pessoas acharem que não vou ser capaz ou que vou ser um entrave. Mas acho que todos nós temos de dar o nosso contributo para que isto não aconteça. Devemos ser nós, porque afinal nós é que vivemos determinadas experiências, vivemos em determinadas condições, portanto não devemos guardá-las para nós, devemos partilhá-las. E partilhá-las com naturalidade. Ok, eu tenho isto ou tenho aquilo, mas eu sou um cidadão de pleno direito e estou aqui para colaborar. Mas também espero a vossa colaboração. Ninguém é melhor ou pior; somos diferentes simplesmente, mas somos todos, somos todos diferentes.